Crítica do livro “Cães Maus Não Dançam”
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A lealdade canina é das qualidades mais apontadas a esta espécie. Mas é fácil esquecermo-nos do quanto os cães sofrem nas nossas mãos por conta dessa mesma característica. “Cães Maus Não Dançam”, de Arturo Pérez-Reverte, dá vida e uma perspectiva sobre quem não tem voz para se defender.
A bom ritmo e com vivacidade, chega-nos a história de Negro, um ex-cão de luta – rafeiro cruzado de mastim espanhol e cão de fila brasileiro – que sobreviveu a dois anos de combates para se tornar num cão de guarda:
“Certo que, chegando a este ponto, podia ter-me ido embora para vagabundear à minha vontade; mas eu já disse que cães da minha casta – todos os cães, para dizer a verdade – têm certas regras e certos códigos nos genes. Além de que, mesmo sem eles, desertar implicava procurar a vida em caixotes do lixo e em becos, com os anos que eu tinha – oito era demasiado para um cão de luta –, com o risco acrescido de pisar uma casca de banana e acabar por atravessar a Porta Sem Retorno: a sinistra secção municipal da qual ninguém sai”.
Cães Maus Não Ladram, Arturo Pérez-Reverte, p. 23
Uma aventura atribulada e perigosa para salvar os seus amigos
Nos seus tempos livres, Negro gosta de ir ao Bebedouro da Margot, um local de encontro para todos os cães da zona, perto de um rio onde escoam restos de uma destilaria de anis. É lá que descobre que o seu amigo Teo e um outro cão de raça desapareceram. Resolve procurar pelo seu paradeiro. O que ele não contava é que essa busca lhe atiçasse os demónios e as cicatrizes que carrega no corpo.
Apesar de não ser uma história particularmente violenta e brutal, somos introduzidos às lutas clandestinas de cães, dinamizadas por humanos gananciosos e cruéis, e conhecemos termos como “sparring”, que se refere a cães que são usados apenas para os treinos – os quais são literalmente carne para canhão –; e “killers”, cães com instinto violento e assassino.
Os cães: nem humanos nem bestas
O risco de uma história destas é a potencial humanização dos cães. Contudo, esse não é o objetivo de Pérez-Reverte. Antes, pretende-nos fazer compreender os instintos destes animais: não há nada de ilógico, artificial ou complicado neles, são até bastante simples; talvez o problema esteja em nós, que os tentamos entender à nossa imagem.
“Entre os seres humanos há de tudo: seres dignos que nos dão educação, amor e felicidade, e seres miseráveis cujas virtudes não estão há altura das de um bom rafeiro: gente vil e que nos dá cabo da vida e nos leva à tristeza, ao abandono, à solidão, ao horror e à loucura.”
(Pérez-Reverte, p. 128)
Poderá não ser a humanização dos cães o objetivo final do livro, mas o exercício de simpatizar está subjacente às palavras do nosso protagonista. Negro faz mais do que se vitimizar a si e à sua espécie: denúncia o desprezo, a negligência e os maus tratos, acusa a hipocrisia dos humanos e reforça os valores dos canídeos – a lealdade, senso de justiça, dignidade e honestidade.
Claro, há cães que se desviam para o mau caminho. Quanto a esses, Negro deixa também implícito que o seu comportamento é, em muito, influenciado pelo tipo de dono que têm ou pelas experiências que vivenciaram.
“– Eu chamo-me Tomás. – Sorria com tristeza. É um nome ridículo para cão, já sei. Mas foi uma menina quem mo pôs. Uma humana pequena… Lembro-me do seu cheiro morno.
Suspirou fundo e ficou a olhar para o vazio.
– Sete meses certos – murmurou um instante depois. – De cachorrinho de Natal a estorvo para as férias de verão.
– Todo um clássico – fiz notar.
– Quando durmo, ainda sonho com o carro a ganhar velocidade enquanto corro atrás deles e eles se afastam. (…) Durante semanas vaguei pela estrada, à espera de os ver regressar.
– Claro.
– Mas não regressaram.
– É óbvio que não.
– Nunca o fazem.
Trocámos um olhar triste.”
A metáfora do livro aplica-se à vida humana
Um dos dilemas que Negro e os seus amigos enfrentam no fim é a possibilidade de se libertarem dos humanos e voltarem às raízes, ou permanecerem subjugados a séculos de domesticação que os tornaram dependentes e vulneráveis.
Também nós, humanos, sofremos de um dilema semelhante. De um lado, temos o estilo de vida dos nossos antepassados que escolhemos renegar, por outro temos as regras e restrições de uma sociedade que inventa valores, crenças e ideais para nos afastarem da nossa verdadeira identidade, para nos condicionarem e tornarem escravos das desigualdades.
Há muito para reflectir através deste livro, além de que é de leitura rápida, agradável e necessária.