Comportamento canino: a inteligência, a imitação e a dominância
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Jean Donaldson é uma especialista de renome mundial em treino e comportamento canino. O seu livro “The Culture Clash” é uma das obras de referência para profissionais e tutores apaixonados pelo mundo dos cães.
Formada em Psicologia Comparativa e em Biologia Evolutiva, é actualmente a principal instrutora, coach e mentora da Academy for Dog Trainers, nos EUA, que fundou em 1999.
Nesta parte da nossa entrevista, falamos sobre a inteligência, a imitação e a dominância. Termos commumente referidos como guia do comportamento canino, mas que podem, na verdade ser mais um reflexo nosso do que dos nossos cães.
Este é apenas um excerto desta grande entrevista. Podem ver os restantes artigos com os diversos temas abordados com a Jean Donalson aqui:
Um dos problemas que está presente no seu livro “The Culture Clash”, diz respeito a tratar os cães como se fossem pessoas, o que, conforme escreveu, é como um castigo para eles. Pode explicar porque defende esta ideia?
Sim. Recentemente, não sei se viram, nos últimos 10 anos, tem havido muito interesse e bastantes pesquisas que tentam provar que os cães são capazes de imitar. Que conseguem ver o que nós fazemos e imitar.
Serão a inteligência, a imitação e a dominância as principais características do comportamento canino? Veja o vídeo com a entrevista completa.
Ah sim, um treinador…
Foi um treinador húngaro que, juntamente com um grupo de pesquisa, publicou um estudo. Olhando para este estudo, detectamos inúmeros problemas.
A ideia de que a maior parte das pessoas partilha é a de que é importante tentarmos provar que os cães são muito espertos, que têm moral, que pensam como nós, que conseguem imitar, que têm muitas das nossas ferramentas mentais e que é importante que possamos provar tudo isto, caso contrário eles não têm valor.
Por outras palavras, a única coisa que é importante é a inteligência, ou um cérebro semelhante ao cérebro humano, e, quanto mais conseguirmos fazer com que os cães se pareçam com os seres humanos, melhor os trataremos.
Este pensamento preocupa-me muito porque é como se construísses um castelo de cartas que, eventualmente, vai cair. Porque é que nós precisamos que os cães sejam como os humanos? Porque é que a inteligência é a única característica apreciada? Porque é que os nossos cérebros são o standard pelo qual comparamos todos os outros animais? E se conseguirmos provar que os cães são como os humanos, então eles têm mais valor?
“A inteligência é apenas um acto no concurso de talentos”
Um psicólogo muito famoso chamado Steven Pinker, disse que “a inteligência é apenas um acto no concurso de talentos”. A natureza é como se fosse um concurso de talentos, alguém toca um instrumento, alguém canta, alguém faz malabarismo, alguém faz acrobacias, há imensos truques diferentes na natureza para se conseguir viver neste mundo, e a inteligência é um desses truques que nós achamos ser o melhor, porque é nosso.
Por isso, nós pensamos que é o mais importante, é muito óbvio para nós que a inteligência é o padrão mais alto pelo qual temos de comparar todas as outras espécies, mas isto é ridículo.
Se fossem, por exemplo, os morcegos a falar sobre este assunto, diriam: “bem, se os humanos não conseguem usar a ecolocalização, são ridículos”. Portanto, “vamos fazer uma pesquisa para mostrar que as pessoas conseguem usar a ecolocalização e, dessa maneira, não temos de ser maus para as pessoas”.
Os cães são, em alguns aspectos, similares aos humanos. As emoções são similares, sentem o medo, a alegria, a raiva… sentem estas emoções primárias. O valor deles é que estão conectados connosco.
Nós não temos de tentar inventar, ou pretender, que eles têm mais inteligência do que realmente têm. Eles têm o seu próprio leque de ferramentas que são bastante interessantes, são muito bons farejadores, têm um excelente sentido de orientação, há certas coisas que eles são muito bons, mas não têm necessariamente as mesmas ferramentas que nós temos. E devíamos celebrar a diferença ao invés de tentar provar que eles têm as nossas ferramentas.
Sim, concordo. Outro assunto sobre o qual a gostaria de ouvir falar prende-se com o facto de existirem muitos donos e treinadores de cães que descrevem vários comportamentos como “comportamentos dominantes”. Para si, quão importante é o conceito de dominância para explicar o comportamento de um cão?
É um conceito problemático, por duas razões: primeiro, porque não é um conceito preciso. É muito pouco provável que a dominância seja o motivador principal para um cão. Os cães não formam matilhas estáveis, os machos nem ficam por perto para criar os filhos. Os cães não têm uma hierarquia com base na dominância como, por exemplo, os chimpanzés ou os humanos. A segunda razão é que quando uma pessoa diz que o problema é o cão ser dominante, isto aponta para uma solução que tende a ser violenta.
Sim, é verdade.
Portanto, existem estes dois problemas. Uma coisa seria se isto fosse cientificamente preciso ou comprovado, se assim fosse teríamos de concordar. Mas não é. E a outra coisa, como eu disse, relaciona-se com o facto de nos fazer ter acções que não são úteis. Mas o mais interessante é que, independentemente da quantidade de estudos, mesmo que pudéssemos dizer que eram baseados em análises científicas realizadas por biólogos, a dominância é sempre um conceito que fica preso na nossa memória e, por isso, as pessoas continuam a falar sobre ela.
Isto comprova que para os humanos este é um conceito que pega, havendo muita dificuldade em se desligarem dele.
Acho que é por sermos obcecados por este conceito e por vermos dominância em todos os comportamentos, uma vez que esta está presente nas relações interpessoais. Isto é interessante porque somos nós a projectar nos cães algo que, mais uma vez, é um comportamento humano.
Compreendo, mas concorda que a dominância existe no comportamento canino?
Sim, concordo.
Há espécies para as quais a dominância é muito importante. Se se olhar para o humano, é um óptimo exemplo. Tudo, desde, por exemplo, lugares no exército, ou na igreja, onde temos o papa, depois os cardeais, depois os arcebispos, depois os bispos e, finalmente, os padres. Em corporações temos os CEO, depois os VPs e por aí em diante. Em qualquer organização humana existem níveis.
As pessoas passam grande parte da vida a tentar subir de nível. Os videojogos são feitos em níveis. Tudo é sobre como alcançar o próximo nível. E é dessa maneira que conseguimos ser bem-sucedidos, que conseguimos ter mais opções de serviços e bens, esta é a base de como tudo funciona.
Portanto, é difícil para nós imaginarmos que nem todos os seres têm por base isto. Não acho que aconteça em todas as espécies, mas em algumas delas.
Deseja saber mais sobre comportamento canino?
Se o treino e comportamento canino são áreas do seu interesse, recomendamos toda a entrevista com Jean Donaldson, disponível no canal de YouTube do Cão Nosso.