O trajecto de Ken Ramirez e a sua descoberta da linguagem universal

Tal como se pensa num veterinário e na alimentação, tem de se também pensar na gestão do comportamento, em como se vai treinar o animal.

Hoje entrevistamos Ken Ramirez. Há muito a dizer sobre o Ken, um dos melhores comportamentalistas e treinadores de animais do mundo, com uma carreira verdadeiramente impressionante.

Actualmente, o Ken é o vice-presidente executivo e o director de treino da empresa Karen Pryor Clicker Training, onde supervisiona o desenvolvimento e a implementação de programas de treino para esta organização.

O Ken é um biólogo e um comportamentalista animal com mais de 40 anos de experiência. Durante este período, supervisionou e prestou consultoria em projectos de treino para muitas organizações zoológicas em todo o mundo.

Ken Ramirez iniciou a sua carreira de treino com cães-guia para deficientes visuais e continua a trabalhar com organizações que visam treinar cães para trabalhos de serviço, busca e resgate, detecção de bombas e de narcóticos. O Ken também manteve uma ligação com o treino de animais de estimação ao longo da sua carreira. Apresentou duas temporadas de sucesso da série de televisão sobre treino de animais de estimação, “Talk to the Animals”, onde comparou o treino de animais de estimação com o treino de animais em instalações zoológicas.

Por último, mas não menos importante, o Ken Ramirez administrou, durante 20 anos, um curso de pós-graduação em treino animal na Western Illinois University, escreveu para inúmeras publicações científicas e é o autor de inúmeros livros conhecidos, em particular do livro “ANIMAL TRAINING: Successful Animal Management through Positive Reinforcement”, publicado em 1999.

Entrevista a Ken Ramirez - Primeira parte

Ken, em Portugal, existe uma grande preocupação com o número elevado de cães abandonados e vadios. Acreditamos que uma das principais razões para esta situação é a falta de informação e de educação das pessoas sobre a psicologia e o comportamento canino.

Devido a esta realidade, no Cão Nosso pretendemos fornecer mais e melhor informação aos tutores de cães. Acreditamos que esta é a melhor forma de promover uma cultura de responsabilidade entre todos aqueles que pretendem ter um cão.

Com esta breve entrevista, através da sua experiência e conhecimento, esperamos chegar não só aos treinadores caninos, mas também a muitos donos de cães (e futuros donos) e dar-lhes alguma ajuda na aventura de ter um patudo.

O Ken treinou milhares de animais nos últimos 40 anos. Olhando para o início da sua carreira e comparando com os dias de hoje, acha que as pessoas tratam melhor os seus animais, nomeadamente os cães?

Sabem, eu acho que ao longo dos anos tem havido uma evolução na maneira das pessoas verem os animais de estimação. E penso que em geral, há um melhor entendimento das necessidades dos nossos animais. Acho que o amor, o desejo e o cuidado que as pessoas põem nos seus animais está a crescer. Por isso, acho que está muito melhor, mas, ainda assim, acho que há uma falta de educação em muitas áreas. Estou crente de que uma das razões para que aqui nos Estados Unidos da América (EUA) haja tantos cães em canis que acabam por ser eutanasiados todos os anos, é bastante semelhante à razão pela qual vocês têm tantos animais abandonados. Há tantas pessoas que vão buscar um cão, ou um gato, ou outro animal de estimação, e que não pensam no facto de que o treino e o comportamento são uma importante parte do seu cuidado.

Todas as pessoas que vão buscar um cão sabem que provavelmente terão de ir a um veterinário de vez em quando, mas nem sempre pensam que vão precisar de um treinador profissional para ajudar a compreender as necessidades comportamentais do animal. Quando se olha para as razões pelas quais as pessoas desistem dos seus animais, é normalmente devido a problemas comportamentais, não percebendo que, se dedicassem um pouco de tempo em perceber o treino, conseguiriam ter muito mais controlo, o animal seria melhor comportado e acabariam por não o abandonar. Portanto, eu acho que as pessoas, por muito que amem os seus cães, ainda falham em reconhecer o valor do treino. Acho que muitas vezes as pessoas pensam no treino como um luxo, algo que é feito se houver tempo, e isso não é o que eu penso sobre o treino. Vejo o treino como essencial para o bem-estar dos animais. Tal como se pensa num veterinário, na alimentação, no ambiente certo, tem de se também pensar na gestão do comportamento, em como é que se vai treinar o animal e enriquecer a sua vida.

Acredito que, fruto dos quarenta e tal anos que tenho enquanto treinador, a percepção das pessoas sobre os animais, o cuidado que têm com eles, tem melhorado, apesar de continuar a haver uma falha de compreensão do valor do treino.

É verdade. E as pessoas tendem em procurar um treinador apenas quando as coisas estão mal. Não olham para o treino como uma prevenção.

Sim, é exactamente esse o ponto. Muitas vezes não ligam para um treinador até ser demasiado tarde. Até o problema ficar grande. É por isso que eu sempre encorajo as pessoas, desde o primeiro dia em que têm um cão, a pensarem no treino, a ensinarem boas maneiras, a ensinarem como viver no nosso mundo, por forma a que o seu cão não venha a desenvolver problemas, evitando que a situação se torne difícil para todos.

" Encorajo as pessoas, desde o primeiro dia em que têm um cão, a pensarem no treino"

Ken, desde 2005, trouxe o seu conhecimento sobre os mamíferos marinhos e sua experiência enquanto treinador de primatas para a área dos cães. Pode-nos contar um pouco sobre como o seu conhecimento sobre o comportamento e a psicologia dos mamíferos marinhos e dos primatas o ajudou a treinar cães?

Uma das coisas que eu acho que me ajuda muito é… eu comecei a minha carreira enquanto treinador de cães quando era muito, muito novo, tendo trabalhado muito com cães guia para cegos. Depois, mudei-me para o mundo zoológico, começando a trabalhar com golfinhos, primatas, “gatos grandes” e com pássaros. Há uma série de coisas que esta experiência me trouxe. Tornar-me consciente de como treinar tantas espécies de animais diferentes, ajudou-me a ver a universalidade do treino, o facto de que as leis do treino, a ciência por detrás de como os animais aprendem, é a mesma. Quer esteja a trabalhar com um reptil, um pássaro ou um mamífero, todos os animais aprendem da mesma maneira. Quando me apercebi desta conexão, tornei-me num melhor treinador. E, adicionalmente, uma das coisas que se torna muito importante quando se trabalha com animais exóticos de grande porte, é ser-se muito consciente da sua linguagem corporal. Quando se trabalha em contacto livre com um tigre grande ou um gorila grande, estes animais podem magoar-te e, portanto, tens mesmo de aprender a ser sensível às suas necessidades e ser consciente daquilo que fazem. Porque se cometes um erro e fazes a coisa errada com um animal perigoso de grande porte, ele pode matar-te. E o que isso faz é tornar-te mais sensível às necessidades do animal, mais consciente em ler a sua linguagem corporal, ser consciente das coisas que os podem chatear, frustrá-los, fazê-los nervosos.

Por se estar muito atento a estes aspectos na presença de um animal perigoso de grande porte, quando se trabalha com cães, só porque eles são mais pequenos, não significa que não fiquem frustrados, nem nervosos. A experiência de trabalhar com animais perigosos torna-nos muito conscientes de como adaptar o treino a todas as nuances que qualquer animal, seja grande ou pequeno, nos pode mostrar. Ajudou-me mesmo a melhorar a minha capacidade de observação, a estar consciente de todas as coisas pequeninas que um cão nos mostra quando nos quer transmitir que não está confortável. E isso torna-te num melhor treinador porque a melhor coisa que podemos fazer enquanto treinadores é ser responsivos às necessidades dos nossos animais e conseguir interpretar tudo o que eles fazem, para lhes darmos um bom feedbcak e, assim, cuidar bem deles.

Para me tornar híper consciente, híper sensível e muito melhor observador, trabalhar com outros animais foi uma grande ajuda. É por isso que, hoje, giro o Karen Pryor National training Center, onde incentivo as pessoas a trabalharem com espécies diferentes porque acho que isso nos torna em melhores treinadores.

É curioso pensar numa comunicação universal entre espécies, numa linguagem universal.

Sim, mas demora tempo a aprender, a interpretar. Umas das vantagens que temos enquanto treinadores de cães, é que há imensos livros de como interpretar a linguagem corporal. Mas quando se trabalha num zoo, não há um livro sobre a linguagem corporal de uma girafa, não existe… então, tem de se aprender a ser-se muito consciente do que cada animal te está a mostrar. Mas sim, acaba por tornar-se no que disse, uma linguagem universal.

"Acaba por tornar-se no que disse, uma linguagem universal"

 

De todos os animais que treinou, qual foi o mais desafiante? E porquê?

Essa é uma boa pergunta. Acho que a resposta a essa pergunta… varia muito. Mas diria que o animal mais desafiante seria um animal que eu não conhecia, não percebia, nem tinha nenhum conhecimento sobre ele. Uma das coisas que acho importante quando começamos a trabalhar com um animal, é termos tanto conhecimento quanto possível do seu background, onde nasceu, como a interacção com humanos tem sido, como é o seu passado de aprendizagem. É quando se trabalha com animais tímidos, ariscos e/ou nervosos, sobre os quais não temos nenhuma informação, que o treino se pode tornar mais difícil.

Portanto, não acho que haja uma espécie que seja mais difícil de treinar, normalmente tem mais a ver com a falta de informação e de preparação, e se não se tem tempo de se preparar e de se ter o conhecimento sobre o background desse animal, esses casos tornam-se mais desafiantes, simplesmente porque não se tem a informação que nos ajudaria a resolver o problema. Quando entro num caso de consultoria de um cão difícil, se eu tiver o dono presente que sabe a história toda desse cão e se ele a partilhar comigo, então, esse treino, mesmo que seja um trabalho difícil, torna-se mais fácil por ter essa história e esse conhecimento. Sem esse conhecimento torna-se muito difícil. Portanto, não é a espécie que é difícil, o que é difícil é tentar fazer um trabalho sem se ter toda a informação de que se precisa.