Filosofia de treino, importância das social skills e castigos
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Hoje, publicamos a segunda parte da entrevista que fizemos ao Ken Ramirez, um dos melhores comportamentalistas e treinadores de animais do mundo, com uma carreira verdadeiramente impressionante.
Nesta parte da entrevista, falaremos, essencialmente, sobre a filosofia de treino do Ken Ramirez, a importância das social skills e os castigos.
Aproveitem!
Entrevista a Ken Ramirez - Segunda parte
Em relação à sua filosofia de treino, adopta uma abordagem diferente da maioria dos consultores de treino de animais porque se concentra mais nas pessoas do que nos animais. Pode nos explicar quais são os principais fundamentos da sua filosofia?
É interessante, não é que não me foque no animal, é claro que o animal é importante, mas normalmente, enquanto consultor, estou a trabalhar com pessoas, estou a ajudar as pessoas a treinar os seus cães, estou a ajudar as pessoas a resolver os seus problemas, e, portanto, sinto que tenho de me conectar muito bem com os meus clientes. Tenho de ajudá-los a não se sentirem mal pelo facto de terem um problema. Muitas vezes, quando as pessoas têm um cão agressivo, ou um sério problema comportamental, sentem-se mal, sentem-se mal por terem um cão que interage de forma problemática com toda a gente. E eu tento sempre lembrar os clientes de que, muitas vezes, estes comportamentos dos cães de que nos tentamos livrar são, na realidade, comportamentos naturais.
Os cães que são agressivos, são-no por uma razão, os cães que estão a destruir a mobília, fazem-no por uma razão, estes são comportamentos normais para estes animais. Portanto, eu quero que as pessoas percebam que isto é um comportamento normal, que acontece. Nós apenas temos de ensinar ao cão uma alternativa para esse comportamento. Portanto, uma grande parte da minha filosofia é ajudar as pessoas a perceber um bocadinho do que é natural para os cães. É importante estabelecer uma conexão com as pessoas porque, se eu as fizer sentir mal porque o cão delas se porta mal, ou criticá-las pela maneira como tratam o seu cão, as pessoas podem ficar na defensiva e, de repente, deixam de estar receptivas às minhas instruções e ideias que as iriam ajudar.
Portanto, para mim, ser um bom treinador é ter boas people skills, saber comunicar, saber ouvir, arranjar uma maneira de partilhar o nosso conhecimento que não faça com que a pessoa fique na defensiva, que não faça a pessoa sentir-se mal consigo mesma. Depois, quero ver o animal, porque dentro da minha filosofia ponho as necessidades e o conforto do animal em primeiro lugar. O treinador não consegue fazer isso sozinho, não é o seu cão, é o cão do cliente, portanto temos de arranjar uma maneira de comunicar bem com os clientes e de fazer com que eles sejam um parceiro neste processo. Sou o treinador mas vou mostrar ao meu cliente como treinar e quero ajudá-lo a ser bem-sucedido a trabalhar com o seu cão. Assim, torna-se este processo colaborativo, uma vez que, para mim, grande parte do trabalho com animais é trabalhar com os clientes, pelo que é sempre importante arranjar maneiras de os ter do nosso lado e de os fazer perceber que fazemos parte da mesma equipa.
Sim, é muito interessante, a sua sensibilidade. Há aqui em Portugal, e acredito que no EUA também, muitos treinadores de cães que são óptimos com cães, que sabem muito sobre cães, mas têm uma verdadeira falta de capacidade social. Às vezes ouvem-se frases como “eu prefiro cães/animais a pessoas”, o que nos leva a pensar sobre a forma como este treinador consegue trabalhar com um cliente se não sabe como comunicar com outras pessoas…
É um problema presente na área dos animais, muitas vezes ouço veterinários a dizer “eu adoro animais, mas odeio pessoas”, ou ouço um treinador a dizer “prefiro muito mais cães a pessoas”, e eu percebo esse sentimento, mas o problema é que, muito dificilmente, alguma vez alguém acabe sozinho numa ilha deserta a trabalhar com um cão. Se fores a única pessoa que está numa ilha com esse cão, onde não há mais ninguém, não precisarás de ser bom com pessoas porque a única criatura à tua volta é o tal cão. Mas no mundo real, se vais trabalhar com cães, trabalharás com as pessoas que vivem com esses cães e, por isso, tens de ser bom com pessoas.
Uma das coisas que me angustia muitas vezes, no nosso mundo, é que, os melhores treinadores que conheço, são muito maus com pessoas, e, por isso, o que acaba por acontecer é que não conseguem transmitir o seu conhecimento sobre animais, uma vez que não aprenderam as aptidões sociais e de comunicação para trabalhar com outras pessoas. E isso é angustiante.
Eu também me preocupo muitas vezes com os novos… não sei, nos últimos 20 anos, com muita internet, social media e coisas desse género, algumas vezes, quer estejas no Facebook, no Instagram ou no Tiktok, ou em qualquer outra plataforma, as pessoas conseguem tornar-se muito criticas de coisas que veem na social media e, muitas vezes, vejo que a informação mais maldosa é posta por treinadores de reforço positivo, por pessoas que acreditam no reforço positivo mas que, no entanto, não o estão a usar com as outras pessoas. Eu encorajo mesmo as pessoas a encontrarem uma maneira de não reagirem tão mal, de não serem tão mesquinhas, de não serem tão duramente críticas, percebendo que não faz mal nenhum não se concordar com alguém. A maior parte das pessoas que trabalham com animais, fazem-no porque os amam, podendo fazer algo com que não concordes, mas se queres mesmo convencê-las a fazer algo de uma forma diferente, tens de as abordar com gentileza, tens de arranjar maneira de lhes mostrar que têm uma razão para te ouvir. Mas, muitas vezes, esta sociedade da internet é tão rápida a julgar, tão rápida a ser crítica… eu gostava mesmo de que as pessoas fossem mais rápidas a dizer – “Hei! Deixa-me ser teu amigo, bora falar, eu adoro animais, tu adoras animais, bora falar sobre isso e arranjar-mos uma maneira de melhorarmos”.
" Para mim, ser um bom treinador é ter boas people skills, saber comunicar, saber ouvir, arranjar uma maneira de partilhar o nosso conhecimento "
Exactamente. As pessoas têm de saber como… se eu não concordo contigo em alguma coisa, vamos então concordar em discordar, as pessoas têm de aprender a discordar, certo? Não é mau discordar…
De facto, é uma grande e importante parte do que nós chamamos “método científico”. Quando uma publicação científica sai, escreves o que encontraste, o que descobriste, o que aprendeste, e, depois, diferentes cientistas comentam, criticam, dizem o que não gostam e ajudam a fazer com que a tua publicação seja melhor. E, portanto, quando as pessoas estão habituadas a estar na comunidade científica, acho que se habituam a que a discordância seja parte do processo, mas essa discordância não te faz meu inimigo, discordar não significa que estejamos um contra o outro, apenas significa que discordamos sobre este conceito em particular, e há maneiras incríveis de se ter discordâncias, mas temos de as ter numa maneira gentil, civilizada. Eu acho que o que acontece é que, muitas vezes, quando se fala de reforço positivo e do uso de ferramentas aversivas e de castigo, as pessoas têm opiniões muito vincadas, muito fortes, e em vez de discutirem sobre o porquê de acharem essa técnica boa ou má, querem apenas transmitir porque é que tu estás errado.
Isso é uma grande parte do que eu faço enquanto consultor, sendo um treinador de reforço positivo quero ver as pessoas a mudar e, para isso, preciso que essas pessoas me convidem a participar. Quando trabalho com oficiais da polícia, com equipas de busca e salvamento ou com organizações de cães guia, que estão a tentar distanciar-se do uso de castigos, não posso entrar e dizer-lhes “têm de parar de usar castigos de uma vez por todas”. Não o posso dizer porque essas são as ferramentas que eles sabem usar.
Assim, tal como quando treinamos os nossos animais, onde avançamos através de sucessivas pequenas aproximações, movendo-nos em direcção a um objectivo, também o devemos fazer com as pessoas que usam o castigo. Relativamente a estas pessoas, penso “ok, vamos ver se conseguimos com que uses um bocadinho menos e vamos gradualmente mover-te nesta direcção”. O que não faço é entrar e dizer que o que estão a fazer está mal, que são pessoas más. Entro e digo “vamos ver se conseguimos arranjar uma maneira de treinar melhor, vamos ver se conseguimos arranjar uma maneira de melhorar o treino”, abrindo, desta forma, um diálogo, a partir do qual as pessoas ficam muito mais receptivas a ouvir. Acho que é isto que nós temos de melhorar, aprendendo a dizer “eu e tu fazemos isto de forma diferente, ensina-me o que tu fazes e eu ensino-te o que eu faço, e depois vamos descobrir qual é o melhor método”.
Sei que, pela minha experiência, se conseguir que alguém use o reforço positivo de forma eficiente e correcta, será bem-sucedido. Caso não seja bem-sucedido, é porque não ensinei da melhor maneira e, então, tenho de voltar atrás e dizer “ok, deixa-me arranjar outra maneira de ensinar isto”. Assim, podemos ser amigos enquanto trabalhamos no sentido de mudar as nossas mentes relativamente a um procedimento ou a um determinado tópico.
Sim, no sentido do que está a dizer, lemos uma frase sua que diz “estamos empenhados em ajudar os clientes a fazer a transição para uma abordagem mais positiva no trabalho com os seus animais”. Quando falamos de treino, e particularmente de resolução de problemas de comportamento, existem limites para o reforço positivo? Há alguma circunstância em que aceita o uso do castigo negativo ou mesmo do castigo positivo?
Acho que há momentos onde o castigo vai acontecer, acho que é importante reconhecer que os “castigadores” existem no mundo. Eu…
Castigos ambientais…
Sim, castigos ambientais. São coisas que existem que estão fora do teu controlo. Portanto, se estou a passear com o meu cão e um motor de um carro o amedronta, pode não vir a querer andar nessa rua novamente porque esse comportamento foi castigado, não por mim, nem por ninguém, apenas pelas circunstâncias do ambiente daquele momento. Portanto, eu, como um comportamentalista e um treinador, preciso de perceber o castigo. Preciso de conhecer como funciona porque vai acontecer no meu ambiente. Vai acontecer de vez em quando e até pode acontecer todos os dias. Por isso, é importante que eu o compreenda. No entanto, enquanto treinador, nunca organizo um plano de treino que preveja o uso de castigo. Mesmo quando chego a um momento complicado, o castigo nunca é parte do meu plano de treino, seja em que momento for.
Quando trabalho com as autoridades policiais ou com escolas de cães guia, que treinam os cães para trabalharem junto do público, sei que eles não querem um cão que se distraia com um esquilo ou com um veado a passar. Querem um cão que fique na sua missão e, muitas vezes, o que estas organizações fazem é usar o reforço positivo para treinar as coisas que eles querem e usar o castigo para lidar com distracções e com situações que exijam um grande controlo dos impulsos. Isto deve-se ao facto de, nalgumas situações, ser difícil encontrar uma abordagem dentro do reforço positivo.
Mas o que nós descobrimos e que até agora… sabes, na tua introdução disseste quarenta e tal anos… eu já sou treinador há quase 50 anos… e, em todo este tempo, ainda me falta descobrir algo, um problema ou um comportamento que eu não conseguisse mudar usando o reforço positivo. Portanto, é possível, apenas requer pensamento. Muitas vezes, a única razão pela qual parece difícil é porque ainda ninguém te mostrou uma maneira melhor, ou porque ainda não tens as aptidões para o realizar. Portanto, na minha perspectiva, devemos desenvolver essas aptidões, desenvolver esses comportamentos alternativos e arranjar formas que resultem. Vai sempre resultar? Bem, nada resulta sempre, mesmo os comportamentos mais severamente punidos vão de vez em quando voltar, se as condições forem favoráveis para tal.
Então, para mim, a solução passa muitas vezes por criar condições ambientais para que um animal seja bem-sucedido. Um dos melhores exemplos sobre esta temática são as organizações de cães policias e militares com quem trabalho. Uma das situações mais difíceis é quando os treinadores de cães de ataque, cães estes que adoram morder, dizem “não há nada de que um cão goste mais do que de morder e, por isso, a única maneira de fazer com que um cão pare de morder é usar a coleira electrónica e dar-lhe um choque”. Percebo que eles possam pensar assim, mas a realidade é que podem usar o comportamento de morder como um reforço. Então, em vez de lhes dar um choque para pararem de morder, o que eu costumo fazer é oferecer a oportunidade de morderem outra coisa que seja mais recompensador, e através desta forma aprendem a largar usando o reforço positivo.
É compreensível que se pense que para se eliminar um comportamento perigoso ou indesejado se tem de usar o castigo. Por definição, é assim que nos vemos livres de um comportamento. Mas o que devemos pensar é no que gostaríamos de ver em vez desse comportamento. Pensar sobre qual o melhor comportamento alternativo. E, depois, na melhor forma de fazer com que o cão veja esse comportamento alternativo para que o possa reforçar. Nessa altura, é só sentarmo-nos com estes profissionais que lidam com estes casos difíceis e dizer-lhes “ok, eu vejo o problema, percebo porque pensas que uma ferramenta aversiva seja a melhor forma de resolver. Mas deixa-me dar-te algumas alternativas. Deixa-me mostrar-te outras formas e vamos experimentá-las. Continua a usar as tuas ferramentas aversivas até eu te poder mostrar uma maneira melhor de fazer isto”. Para mim, é esse o desafio.
Até agora, em todos os desafios que aceitei e em que trabalhei, encontrou-se sempre uma forma de se resolver com o reforço positivo. Portanto, é possível! Posso dizer que será sempre assim? Bem, eu sou bastante céptico quando alguém diz “sempre” ou “nunca”. Isso é muito extremista. Mas é verdade que consegui resolver? Sim, é verdade, até agora conseguimos sempre ser bem-sucedidos. Mas isto não quer dizer que não devamos aprender sobre o castigo, porque está sempre presente e afecta o comportamento dos nossos animais.